Le Monde – Reeleito para seu segundo mandato como governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) analisa as perspectivas políticas para os próximos anos, as relações de sua região, onde a esquerda saiu vitoriosa, com o futuro governo e as dinâmicas da corrida eleitoral. “Se o programa de Guedes tivesse sido apresentado, Bolsonaro perderia a eleição”.
Se Jair Bolsonaro se identifica com Pinochet e Paulo Guedes promete aplicar uma agenda econômica semelhante ao que o ditador chileno fez no país andino, o governador do Maranhão Flávio Dino, 50 anos, tem como referência o ex-presidente chileno Salvador Allende — um marxista declarado que chegou ao poder pelo voto democrático.
Nascido na capital São Luís, Dino acredita que foi a Greve da Meia Passagem — popular movimento estudantil maranhense de 1979, brutalmente reprimido pela polícia — um dos principais fatores que o levou para a política. “Eu tinha onze anos e assisti tudo da minha janela, vi passeatas, policiais batendo em estudantes, bombas de gás lacrimogêneo. A greve ‘abriu minha cabeça’. Simultaneamente tivemos a campanha da anistia, meu pai tinha sido cassado em abril 1964, ele era deputado estadual. Eu tenho o telegrama do comando do exército determinando a cassação dele por ser comunista, e ele nem era (risos). Mas naquela época, assim como nos dias de hoje, tudo que era contestador era classificado como comunismo”, afirma o governador.
Formado em direito na Universidade Federal do Maranhão, advogou para uma série de sindicatos, e aos 25 anos passou no concurso para juiz federal, coincidentemente o mesmo em que Sérgio Moro foi aprovado. Abandonou a magistratura 13 anos depois para entrar na política. “Quando considerei que havia uma transição a ser feita no Maranhão do modelo oligárquico para uma sociedade mais aberta, pluralista, livre, resolvi me engajar nessa causa me filiando a um partido político (PCdoB), me elegi deputado federal e disputei três vezes o governo do estado, 2010, 2014, 2018, perdi a primeira e ganhei as outras duas”, explica.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o primeiro governador da história do Partido Comunista do Brasil prevê uma crise política em 2019 por acreditar que durante a corrida eleitoral a dupla Bolsonaro/Guedes ocultou a agenda econômica que pretendem implementar. Ciente de que a esquerda precisa se reorganizar, defende a criação de uma frente ampla baseada na experiência da esquerda portuguesa, além de afirmar que existem interesses internacionais que operam na desestabilização para que o Brasil não se torne uma potência mundial.
Você é conhecido por militar desde cedo, inclusive no DCE da UFMA. Como era atuar no movimento estudantil numa época em que existiam no mundo, com clareza, dois sistemas políticos…
É, eu sou da época pré-queda do muro de Berlim (risos). Nós nos situávamos de modo geral, e ainda hoje, no campo da esquerda. Havia um debate muito intenso sobre modelos de socialismo, porque naquele período tínhamos a União Soviética, China, Cuba… Havia uma discussão na militância política sobre os modelos na estruturação de uma nova sociedade. Mas, de modo geral, um sentimento anticapitalista, de que o capitalismo não é o final da história, que não é o modelo definitivo por ser concentrador de riqueza e excludente em relação à maioria da população.
Hoje o senhor prefere ser classificado como socialista ou comunista?
Pra mim, hoje, é a mesma coisa. Acho que foi superada aquela visão segundo a qual haveria uma sociedade sem estado, que iria caracterizar o comunismo como uma espécie de etapa superior do socialismo, em que a sociedade seria tão perfeita, tão utopicamente perfeita, que como não haveria classes sociais e injustiças, sequer haveria estado. Isso hoje é inexeqüível pela própria complexidade da sociedade, então pra mim hoje são termos sinônimos.
Mas no mundo de hoje ainda existe espaço para as utopias?
Sem as utopias ninguém vive. Temos que ter os pés na realidade, mas o olhar no horizonte. E as utopias estão no horizonte. Se você ficar preso no aqui e no agora, nas coisas tais quais ela são, você renunciou a vida. Então, temos que estar sempre sonhando, projetando, imaginando, mesmo coisas que da sua vida familiar, pessoal, profissional ou política sejam aparentemente irrealizáveis. Sempre temos que estar olhando para o horizonte, e a utopia é decisivo para que mantenhamos a pulsação existencial na direção transformadora. É claro que isso não deve gerar ansiedade ou agonia, mas precisamos de uma referência, de algo melhor. No meu caso, de que o mundo para ser bom tem que ser bom para todo mundo. Eu sei que gerações e gerações se passarão até que nós tenhamos uma sociedade efetivamente justa, mas eu acredito nisso e luto por isso, é minha utopia, é o que me impulsiona, que me faz todos os dias acordar e trabalhar muito. E acredito que nós temos que colocar um tijolinho na construção dessa utopia.
O que te levou a abandonar a carreira de juiz federal para entrar na política?
A magistratura tem que buscar a isenção, você não pode ser parte de conflitos, pelo menos essa é minha concepção – um e outro, agora, andaram alterando esses cânones. Mas, na minha visão, um juiz tem que ter um comportamento, no máximo quanto possível, que o legitime como arbitro imparcial dos conflitos alheios. Nesse sentido, um juiz não pode exercer com plenitude suas paixões, porque se não ele vai quebrar essa legitimação derivada de uma isenção e imparcialidade. E eu sou muito intenso nas coisas que eu faço, e considerava que havia uma antinomia entre os deveres do cargo de juiz com essa intensidade com que eu procuro fazer as cosias. Associado a isso, existia um limite profissional, porque na maioria das vezes, um juiz de primeira instância trata de casos individuais, de pessoas determinadas, e busca fazer justiça naquele caso, enquanto na política você está lidando, normalmente, com os interesses de milhares ou milhões de pessoas. Quando eu proferia uma sentença, por exemplo, em favor de um estudante ter acesso a educação, eu fazia justiça para uma pessoa. Quando eu construo uma escola, eu estou fazendo justiça para milhares de estudantes.
Eu gostava muito de ser juiz, e posso, inclusive, voltar a fazer com o maior prazer, mas considerava que naquele momento da minha vida, aos 38 anos, e considerando o que estava acontecendo no Maranhão, a desagregação do sistema oligárquico e a necessidade de construir algo novo, fiz a opção mais dura, porém mais congruente com meu jeito de ser e forma de agir.
A esquerda proporcionou avanços no começo desse século, mas o retrocesso foi muito rápido. Porque o Brasil parece estar eternamente condenado a ser um país do futuro?
Muito provavelmente porque não rompemos com características históricas que aprisionam o Brasil. Nós fizemos uma abolição da escravatura que manteve o racismo como algo estruturante da sociedade. Em certo sentido, o capitalismo foi implantado no Século XIX, mas mantendo a mentalidade da casa grande e da senzala. Superamos o regime militar, mas ao mesmo tempo mantivemos a impunidade dos torturadores. Eu te diria que são essas coisas do passado que nos escravizam até hoje, e nos impedem de conseguirmos caminhar para uma sociedade mais igualitária. Enquanto não enfrentarmos esses esqueletos do armário, ficaremos condenados o tempo todo a isso que você diz, essa agonia do eterno retorno. Essas transições imperfeitas ao longo da história fazem com que tenhamos muito retrocessos, exatamente por não completarmos a tarefa de superar esses demônios, sobretudo os demônios da escravidão negra, do passado colonial, da mentalidade de senhores de escravo, de casa grande e senzala, da naturalização da desigualdade, do sofrimento físico visto por alguns como legítimo para o exercício do poder, mediante, por exemplo, a tortura.
Agora um candidato venceu as eleições para presidente sem explicar muito sua agenda, simplesmente com o slogan de ser “contra tudo isso que está aí”, o que parece ser incoerente…
E neste caso ele é profundamente parte disso que estou falando. Todo esse legado, toda essa herança, está impregnado na candidatura dele, mas do que em qualquer outra pessoa.
Muito se diz sobre a reorganização da esquerda. Na sua opinião, como reinventar a esquerda brasileira e qual o papel dela nesse novo cenário que se desenha?
Em primeiro lugar, em relação ao governo Bolsonaro, eu não tenho nenhuma dúvida de que o lugar certo é na oposição. Uma oposição democrática, claro, respeitando o resultado das urnas, porém oposição. O segundo aspecto: é preciso, nesse instante, redescobrir a força e a organização das classes populares, porque são elas que podem ancorar profundamente um processo de mudança social num sentido de combate a desigualdade. Quando olhamos o resultado da eleição presidencial vemos claramente uma clivagem de classes entre o voto do Haddad e do Bolsonaro. Acho que isso é um sinal muito poderoso para a esquerda de onde está sua vertente principal de construção. As classes populares que tem maior interesse na superação da desigualdade, embora a superação da desigualdade obscena que o Brasil tem seja de interesse de todos.
Apesar desse interesse as classes populares ajudaram a eleger um candidato que terá como Ministro da Economia Paulo Guedes e agenda muito semelhante ao que foi o governo Pinochet no Chile. Você já disse em mais de uma oportunidade que prevê uma crise política em 2019. O que você espera dessa eventual crise e como olhar para o futuro com otimismo?
Eu sempre me refugio naquela fórmula gramsciana de “pessimismo na teoria, otimismo na ação”. Ou seja, você tem que ter criticidade na abordagem dos temas, porém acreditar que novas conjunturas se colocam. Apesar do aqui e o agora ser muito difícil e complexo, nós podemos transformar e devemos lutar para transformar. Porque eu imagino que haverá crise? O campo vitorioso, em primeiro lugar, não foi claro em relação ao seu programa de governo, por uma razão simples: se o programa da dupla Bolsonaro/Guedes tivesse sido apresentado ele teria perdido a eleição.
No momento em que esse programa vier à luz, a parte das pessoas que votaram em Bolsonaro acreditando que ele era antissistema irá ver que na verdade ele é uma engrenagem do mesmo sistema de sempre de dominação e de concentração de riqueza na mão de uma minoria. As privatizações propostas por eles vão fazer com que direitos sejam submetidos à lógica do mercado. A idéia da reforma da previdência de Paulo Guedes e Bolsonaro é o mesmo sistema que o Pinochet aplicou no Chile, em que cada um contribui para sua própria aposentadoria. Ou seja, quem mais tem contribui mais e vai ter uma aposentadoria melhor. Quem menos tem vai contribuir pouco e terá uma aposentadoria menor. Isso quebra o laço de solidariedade que é inerente ao conceito de previdência social que está na constituição de 1988, em que toda sociedade contribui para aqueles mais frágeis em razão de sua idade ou infortúnios possam usufruir de um final de vida digno. Então há um inhame de solidariedade que é rompido pelo regime de capitalização, e, ao introduzir esse modelo, os mais ricos deixam de ajudar os mais pobres e por isso a concentração de riqueza continua. A previdência deles é um modelo que tem tudo haver com esse sistema a favor da casa grande. E por isso eu antevejo uma crise política, porque na medida em que isso vier à luz, vai haver frustração de largas parcelas da sociedade, e imagino uma conjuntura muito parecida com o governo Collor, que no prazo de um ano ele já havia erodido praticamente toda sua popularidade.
Como a agenda econômica de Guedes/Bolsonaro deve impactar nos estados do Nordeste, sobretudo o Maranhão, governado por um comunista, onde o futuro presidente prometeu “varrer do estado”?
Só o voto popular do povo do Maranhão pode varrer o Partido Comunista do estado. Bolsonaro não é o “dono da vassoura”, quem é o “dono da vassoura” é sua excelência, o povo. E aí, só em 2022. Então, essa hipótese realmente não existe no contexto democrático.
O que eu espero, obviamente, é que seja possível discutir pautas de interesse da Federação e pautas de interesse do Nordeste. Como disse, a oposição é um exercício legítimo do estado democrático de direito. Não impede, é claro, que naquilo que disser respeito ao desenvolvimento regional, haja debate. Espero que o Nordeste seja preservado no que tem de mais importante para a estruturação de políticas de desenvolvimento. Me refiro, por exemplo, a obras de modo geral, ao Banco do Nordeste, a transferência constitucional de recursos para nacionais, que são devidos ao Nordeste não por benemerência, mas por uma correção de desigualdades históricas, regionais. Então, nós estamos reivindicando a manutenção de políticas de desenvolvimento regional que estão na constituição de 1988, e que são devidas em razão da má formação do federalismo brasileiro que fez com que o eixo mais dinâmico da economia brasileira durante períodos pretéritos sugasse energias das outras regiões do país. Então, nós queremos igualdade e chances de oportunidades. Por isso, defendemos as políticas de desenvolvimento regional.
Tenho muito medo de medidas que sejam antissociais. Por exemplo, se uma reforma da previdência selvagem for implementada, nós teremos o sacrifício das aposentadorias dos trabalhadores rurais para o futuro e isso seria um desastre social, eu te diria um genocídio, mas ao mesmo tempo teria um impacto econômico muito negativo nas nossas cidades do nordeste de modo geral, uma vez que a previdência social e aquele sistema de repartição que eu descrevi, é também um vetor de circulação de riqueza da economia local, de sustentação do comércio local. Então, eu gostaria de sublinhar que essas medidas antissociais, elas têm um efeito no beneficiário imediato, em quem deixará de se aposentar por hipótese, mas tem também um efeito dominó sobre as próprias atividades econômicas dessas cidades nordestinas, cujas redes de comércio e serviço dependem em larga medida, por exemplo, da aposentadoria dos trabalhadores rurais.
Se algumas características apresentadas por Guedes/Bolsonaro já nos permitem fazer uma analogia ao governo Pinochet, não é exagero dizer que seu governo no Maranhão se assemelha ao do atípico revolucionário Salvador Allende, que chegou ao poder pelo voto democrático se declarando abertamente um socialista marxista…
Eu tenho um pequeno busto do Salvador Allende na minha sala, inclusive (risos). Eu tenho alguns bustos ao lado dos meus santos. É um dos grandes ídolos que eu tenho. E um dos grandes livros que eu li é “Confesso que vivi”, do Pablo Neruda. Um livro autobiográfico, claro que é a história do Neruda, mas é muito “entrecortado” porque o Neruda foi Senador do Chile no período do Allende, então esse livro tem muito da intensidade daquele período chileno. Salvador Allende é um dos ídolos políticos que eu tenho, sem dúvida.