Que “ouviram do Ipiranga as margens plácidas” você já sabe, então não é preciso dizer que o episódio que entraria para a história do Brasil como a Independência, em 7 de setembro de 1822, ocorreu em São Paulo – no hoje bairro do Ipiranga, às margens do córrego do Ipiranga – e não no Rio de Janeiro, sede do governo à época.
Mas o que fazia o intrépido dom Pedro pelas bandas paulistas? Como foi essa sua viagem, alguns trechos a cavalo, outros em mula, do Rio até São Paulo, pelo Vale do Paraíba? O que fez o jovem nobre pelo caminho, neste périplo que ele iniciou como príncipe e terminou como imperador?
Em busca dessas respostas, o pesquisador Paulo Rezzutti refez o trajeto, baseado no relato escrito em 1864 por um dos membros da comitiva de Dom Pedro, o major reformado Francisco de Castro do Canto e Melo, irmão da Marquesa de Santos.
“Foram seis dias em que percorremos 1,3 mil km”, conta Rezzutti, que é autor, entre outros, de D. Pedro: A História Não Contada, biografia do primeiro imperador do Brasil.
A viagem – que se estenderia por quase um mês – era importante do ponto de vista político. A província de São Paulo vivia um momento conturbado, com um princípio de motim em que parte da elite ameaçava se recusar a cumprir ordens da capital.
“Dom Pedro veio firmar alianças com os fazendeiros, apaziguar o cenário e preparar terreno para a Independência”, afirma Rezzutti.
“A vinda de Dom Pedro para a Província de São Paulo era estratégica. A união do Brasil era um tema que estava sendo muito pensado e discutido depois que Dom João 6º retornou a Portugal. O risco da fragmentação do Brasil em pequenas repúblicas, como ocorreu na América Espanhola, era possível”, aponta o historiador Diego Amaro de Almeida, pesquisador do Centro Salesiano de Pesquisas Regionais e vice-presidente do Instituto de Estudos Valeparaibanos.
“Para evitar a submissão do Brasil a Portugal ou a desfragmentação do território, Dom Pedro precisava se mostrar um líder capaz de realizar um plano ambicioso de independência de um território de proporções continentais. E ainda precisava de apoio financeiro.”
Na época, o Vale do Paraíba era um dos motores econômicos do País. “Todos aqueles que produziam o café prosperavam, e de maneira rápida”, lembra Almeida. “Ou seja: era o lugar ideal para firmar alianças.”
O fato de Canto e Melo ter integrado essa comitiva é um sinal do momento complicado. O militar integrava o grupo chamado de “leais paulistanos”, uma tropa de correligionários da província que foi montada em janeiro de 1922, na época do episódio histórico conhecido como Dia do Fico, para manifestar apoio ao então príncipe.
No total, 1,1 mil homens participavam dessa guarda especial.
“Não foi fácil para o jovem príncipe e futuro imperador do Brasil enfrentar os diferentes caminhos que os membros da elite do país pretendiam trilhar. As influências externas eram muitas, mas os brasileiros, a ampla maioria, não desejavam voltar a ser colônia de Portugal”, afirma Almeida.
Neste contexto, diz o historiador, havia três possibilidades apontadas por lideranças. Uma era formada por portugueses que desejavam que Dom Pedro 1º retornasse a Portugal e que todas as leis que possibilitavam ao Brasil algum tipo de emancipação fossem derrubadas.
Outro grupo, liderado por Joaquim Gonçalves Ledo, queria que o Brasil se tornasse independente. Mas desejava, contudo, que o país seguisse o rumo da América Espanhola, e as províncias se tornassem repúblicas.
Entretanto, o modelo que prevaleceu foi o defendido por José Bonifácio de Andrada e Silva, que propunha que o Brasil se separasse de Portugal, mas que mantivesse a manutenção do regime monárquico constitucional, com a finalidade de preservar a unidade política e territorial.
O especialista contextualiza assim o cenário que pressionava Pedro 1º. “Ele herdava um país com inúmeros problemas financeiros, políticos e sociais. Precisava e ansiava por todo apoio que pudesse, o que também exigiu um certo esforço de alguém que começava a compreender o tamanho de suas responsabilidades”, diz.
A viagem
O príncipe saiu da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822. Tinha uma comitiva de 30 homens e um roteiro pré-determinado, com paradas estratégicas ao longo da rota até São Paulo. “Entre os membros da comitiva, estava Francisco Gomes da Silva, também conhecido como o Chalaça ou a Sombra do Imperador”, cita Almeida.
A primeira parada, apenas para pernoitar, foi na Fazenda de Santa Cruz, de propriedade da família imperial, ainda no Rio. “Existia, mesmo que de forma precária, uma logística para essas viagens, nas quais eram levadas certas quantidades de alimentos e água para os períodos mais longos”, afirma o historiador.
“E, por meio de mensageiros que acabavam partindo dos lugarejos antes da comitiva real, a próxima ‘parada’ já era anunciada com certa antecedência.”
No dia seguinte, a comitiva adentrava terras paulistas. O futuro imperador visitou o capitão Hilário Gomes de Almeida em suas terras, a então Fazenda Três Barras, em Bananal.
De acordo com Rezzutti, o aristocrata estava doente e acamado. A conversa com o imperador, portanto, teria ocorrido em seu próprio quarto.
O casarão ainda existe, apesar de ter passado por muitas reformas que o descaracterizaram. No local hoje funciona um hotel-fazenda. Uma das suítes, exatamente a que, acredita-se, tenha abrigado Dom Pedro, chama-se “imperial”, em homenagem ao passado histórico.
A parada seguinte, na Fazenda Pau D’Alho, em São José do Barreiro, se tornaria folclórica. Isto porque Dom Pedro, conforme os relatos da época, teria apostado corrida com os demais membros da comitiva e chegado antes do previsto, sozinho, à fazenda, então do Coronel João Ferreira.
Ele bateu palmas e, sem se identificar como príncipe, pediu comida para a proprietária da casa.
Ela o atendeu, mas pediu para que comesse na cozinha “porque a sala de jantar estava sendo preparada com toda a pompa e circunstância para receber o príncipe regente”, como conta Rezzutti.
“Dom Pedro se fartou de assados e guisados, na companhia de escravas e mucamas”, pontua o historiador Almeida. Este episódio teria ocorrido em 17 de agosto de 1822.
No mesmo dia, a comitiva do príncipe chegou à casa do capitão-mor Domingos da Silva, em Areias. O imóvel ainda existe e, hoje, ali funciona um hotel. No dia seguinte, uma parada rápida, apenas para almoço, em Porto Cachoeira, hoje Cachoeira Paulista. Na noite do dia 18, Dom Pedro chegou a Lorena.
Era um parada importante do ponto de vista político, pois ali o príncipe se hospedaria na casa do capitão-mor Ventura José de Abreu.
O futuro imperador cumpriu uma espécie de agenda pública na cidade. Teria plantado uma palmeira no que se tornaria a rua das Palmeiras, no centro do município, visitado a antiga Casa de Câmara e Cadeia e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
No dia 19 de agosto, o grupo partiu para Guaratinguetá, onde Pedro foi hóspede do capitão-mor Manoel José de Melo. “O imóvel não foi preservado”, conta Rezzutti. Ali, conforme apurou o pesquisador, a comitiva teria aumentado, com a adesão de novos seguidores, em uma espécie de guarda de honra.
Dom Pedro tinha novo compromisso público: visitar a então capela de Nossa Senhora Aparecida, hoje no município de Aparecida.
Tratava-se de um importante ponto de peregrinação católica, pois o pequeno templo havia sido erguido justamente para abrigar a imagem da santa, chamada de Nossa Senhora Aparecida, encontrada ali na região em 1717 e, depois, proclamada padroeira do Brasil.
Rezzutti conta que antigos relatos afirmam que Dom Pedro teria rezado na igrejinha e feito uma promessa: se tudo corresse bem, ele faria de Nossa Senhora Aparecida a padroeira do Brasil independente. Na realidade, depois de se tornar imperador, Pedro 1º escolheu São Pedro de Alcântara como padroeiro.
De lá, a comitiva partiu para Pindamonhangaba.
Ali, o príncipe se encontrou com o influente major Domingos Marcondes de Andrade. “Dentre as muitas histórias registradas em diários, conta-se que Domingos Marcondes de Andrade estava montando em um garboso cavalo. Dom Pedro, ao ver o belo animal, começou a elogiá-lo, como que esperando a reação do proprietário”, narra o historiador Almeida.
“Quando mais o príncipe elogiava o cavalo, mais Marcondes de Andrade ficava mudo. Por fim, quando Dom Pedro foi mais incisivo, dizendo que lhe agradaria possuir um cavalo como aquele, Domingos Marcondes propôs um acordo.”
O major teria dito ao nobre que todos sabiam ser costume de Dom Pedro dar aos cavalos que ganhava o nome de seu proprietário anterior. “Mas, enfatizou o homem, nenhum Marcondes até aquela data tinha sido cavalgado por ninguém. Então ele daria, sim, o cavalo ao príncipe, desde que ele escolhesse outro nome para o animal”, conta o historiador.
Em Pindamonhangaba, dom Pedro se hospedou no sobrado do monsenhor Ignácio Marcondes de Oliveira Cabral, irmão do então capitão-mor. A residência não existe mais. Ali, foram tantos os que se ofereceram a integrar a comitiva, na chamada guarda de honra do príncipe, que há um monumento na praça central da cidade em alusão a este fato. E a igreja de São José guarda um panteão onde estão enterrados todos os pindamonhangabenses que integraram a guarda do nobre.
No dia 21 de agosto, Dom Pedro chegou a Taubaté, onde seria recebido na casa do cônego Antônio Moreira da Costa – construção esta que não existe mais. Na cidade, visitou o convento de Santa Clara e a Igreja do Pilar.
A parada seguinte seria Jacareí. Na época, havia uma balsa que ligava os dois municípios, em travessia pelo Rio Paraíba.
“E então há uma outra anedota: a de que Dom Pedro, impaciente, não quis esperar a balsa e atravessou o rio a cavalo. Do outro lado, uma multidão o esperava, e ele, Pedro, sem pestanejar, saiu procurando alguém que usasse calças do mesmo tamanho que as dele, para propor a troca”, relata o pesquisador Rezzutti.
Conforme esses relatos, o “mérito” de ceder as calças ao futuro imperador teria ficado com um jovem pindamonhangabense, depois integrante da guarda de honra, chamado Adriano Gomes Vieira.
Em Jacareí, Dom Pedro ficou hospedado na casa do capitão-mor Cláudio José Machado.
Em Mogi das Cruzes, onde a comitiva chegou em 23 de agosto, Dom Pedro hospedou-se na casa do capitão-mor Francisco de Mello e assistiu à missa na então Igreja de Sant’Ana, hoje catedral homônima.
Penha de França, hoje parte do município de São Paulo, foi a última parada antes da capital paulista. Dom Pedro dormiu ali uma noite, do dia 24 para o dia 25, e assistiu a outra missa na igreja matriz.
O grupo chegou a São Paulo na manhã do dia 25 de agosto. Houve uma entrada oficial. Dom Pedro foi recebido por vereadores, religiosos e a população em frente à Igreja do Carmo. De acordo com Rezzutti, a Igreja da Ordem Terceira é a única coisa que restou dessa passagem do príncipe pelo local.
Foram dias de muito trabalho até o 7 de setembro histórico. Na capital paulista, Dom Pedro convocou novas eleições e governou a província interinamente, recompondo o poder que andava ameaçado.
Princesa Leopoldina
Quando Dom Pedro saía em viagens, quem assumia o comando do País era a princesa – depois imperatriz – Leopoldina. Que, conforme o próprio Rezzutti detalha no livro D. Leopoldina: A História Não Contada – A Mulher Que Arquitetou a Independência do Brasil, biografia da primeira mulher de dom Pedro, não tinha nada da figura caricata e passiva que acabou sendo eternizada nos folhetins.
Justamente enquanto Dom Pedro viajava pelo Vale do Paraíba, Leopoldina arquitetava a separação de Portugal. Em agosto de 1822, ela escreveu uma carta para sua irmã na qual dizia que “o Brasil é grande demais, poderoso e, conhecendo sua força política, incapaz de ser colônia de uma corte pequena”.
No mesmo período, remeteu também uma mensagem ao seu pai, na qual afirmou que “o nobre espírito do povo brasileiro se mostrou de todas as formas possíveis e seria a maior ingratidão e erro político crassíssimo se nosso empenho não fosse manter e fomentar a sensata liberdade e consciência de força e grandeza deste lindo e próspero reino, que nunca poderá ser subjugado pela Europa”. Na correspondência, a princesa chamou Portugal de “pátria mãe infiel”.
“Leopoldina foi importante e brilhante no processo de Independência do Brasil. Fosse ao assumir o papel da regência enquanto o príncipe apaziguava os ânimos dos brasileiros, fosse na negociação para a separação de Portugal”, acredita Almeida.
“Nas poucas cartas que temos deste momento são evidentes a vontade e participação desta mulher que, juntamente com Dom Pedro I, tinham se unido no objetivo de separar o Brasil.”